O Udyat

Recuando até à época em que as lendas, as fábulas e os mitos eram as narrativas que conduziam a vida dos povos, contemplemos Osíris, o senhor do sol e Ísis, a senhora da lua e da magia, que à época grassavam no Egito e cujo reino crescia com eles em beleza e sabedoria; eram amados por todos, talvez com a exceção de Seth, que sentia crescerem dentro de si a ira e a inveja pelos feitos do seu irmão Osíris. 

Quando um dia se vê afastado do Egito, fruto dos seus afazeres bélicos, Osíris deixa Ísis a governar no seu lugar, o que enche o coração de Seth de cólera e ciúme; a quando do regresso triunfante de Osíris, Seth, juntamente com 72 fiéis amigos, oferecem-lhe as boas vindas na forma de um soberbo banquete, no final do qual presenteia a multidão com um magnífico sarcófago em ouro, destinado a quem melhor se lhe adequasse; sabendo já de antemão que este havia sido moldado ao figurino Osíris, o mais alto e forte de entre todos os presentes, eis que quando chega o momento de Osíris vestir o dito sarcófago, Seth e os seus súbditos de imediato o enclausuram no seu interior, arremessando-o de seguida ao rio mais próximo, o Nilo.

Após incontáveis tormentas, Ísis consegue reaver o sarcófago e o corpo de Osíris e é durante o subsequente ritual, cujo propósito é reacender a vida em Osíris, que ambos se unem como que num ato sagrado, que tem como consequência o engravidar de Ísis; findo o empreendimento, e enquanto ambos repousavam de tamanho labor, Seth, envolto pela escuridão, desfaz o corpo de Osíris em 14 pedaços que dispersa por todo o Egito.

Ísis, ainda com o coração dorido de tristeza e com o corpo cansado do fardo que transporta no seu ventre, mantém a perseverança na busca do seu amado Osíris e, com incansável obstinação, consegue encontrar todos os fragmentos do seu amado; todos menos um, pois o falo de Osíris tinha servido de nutrimento a um peixe, e estava para sempre perdido.

Socorrendo-se novamente da magia, Ísis reúne mais uma vez o corpo de Osíris, mas como este estava agora incompleto já não podia ser o senhor da vida, passando desde então a presidir ao mundo dos mortos. Não me atrevo a fazer qualquer correlação de valor entre o membro em falta e o destino final do pobre Osíris, afinal esta narrativa é apenas uma lenda.

Mas a contenda de Ísis perdura, desta vez como zelosa protetora do seu já nato filho Hórus, que desde sempre sofreu diversos atentados por parte do seu tio Seth. Mas esta frágil criança cresceu e com o tempo transformou-se num guerreiro hábil, como seu pai Osíris havia sido, e assim têm início as contendas entre Hórus e Seth na forma de inúmeras e sangrentas batalhas, todas elas, diga-se, ganhas por Hórus; após cada triunfo, Hórus apela às divindades Egípcias reinantes a restituição das terras e do título de seu pai, mas a resposta na forma de indiferença, concluía apenas no retomar das contendas. 

Eventualmente Hórus dá-se a um hiato neste conflito e socorre-se de Ísis para que esta o auxiliasse junto dos restantes deuses que, por deferência à sua patrona, finalmente concedem os direitos de herança a Hórus.

E é precisamente com o desfecho desta contenda que principia a nossa história, quando no decorrer de uma destas sangrentas e últimas batalhas, Seth vilipendia o olho esquerdo a Hórus; sua mãe Ísis substitui-o por um poderoso amuleto, de nome Udyat, que capazmente recupera parcialmente a visão de Hórus.

É desta forma que o olho de Hórus se afirma como uma representação da omnisciência do seu homónimo Hórus, o deus sol, e num símbolo da vitória do bem sobre o mal; os egípcios representavam-no por um desenho estilizado misturando um olho de falcão e um olho humano. Símbolo da vida, da integridade, da sorte, da vitória da luz sobre as trevas, o olho de Hórus aparece em medalhões, esculturas e pinturas por todo o antigo Egito; é por esta iconografia que se define a natureza sagrada do faraó. 

O olho de Hórus, também conhecido por olho que tudo vê, era também o símbolo da casa da luz, onde se praticavam os mistérios, a religião esotérica dos egípcios, e onde não só os sacerdotes aprendiam a sua arte sagrada como era também a paragem onde a família real era iniciada nos mistérios da Arte Real. 

Este símbolo ancestral é compartilhado entre muitas religiões, falsas religiões, cultos e organizações ocultas, mas sempre com o mesmo simbolismo associado à divindade.

Avançando na linha do tempo, enquanto os judeus ignoraram Hórus e seu olho mítico, os gregos fazem do filho de Osíris, o deus criança Harpócrates, com virtudes tão numerosas quanto indefinidas; já os cristãos deixarão passar os séculos antes de associar, num mesmo grafismo, o olho que tudo vê a um símbolo geométrico particular, mas disso já falaremos.

A título de curiosidade, e não como evidência histórica, no primeiro século da era Cristã, o símbolo do olho que tudo vê foi encontrado esculpido na chamada Tumba Talpiot, descoberta em Jerusalém na década de 1980, e que se especulou poder ter pertencido à família de Jesus de Nazaré.

Mas foi durante o período medieval, em particular no século XVII, que este símbolo foi introduzido nas catedrais e noutros edifícios religiosos da Igreja Católica Romana; ele está presente nas catedrais de Aix-la-Chapelle e Chartres; na igreja Saint-Roch em Paris, ou na Capela Real de Versalhes, entre muitas outras. Está presente sim, mas sob uma fisionomia muito diferente daquela do olho de Hórus; trata-se de um triângulo contendo no seu âmago um olho sem pestanas ou pálpebras, complementado por uma nuvem e por raios de luz.

Este triângulo, cognominado de delta, provém em nome e figurino da quarta letra do alfabeto grego, e é representado como um triângulo equilátero, figura considerada perfeita por ter os seus ângulos e lados iguais; é um dos mais insignes e ancestrais símbolos representativos da Divina Trindade, e sobre o qual se fundamentam diversas religiões: Osíris-Ísis-Hórus dos Egípcios, Brahma-Vishnu-Shiva dos Hindus, Nara-Nari-Viraj dos Brâmanes, Ami-Nuah-Bel dos Caldeus e Pai-Filho-Espírito Santo dos Cristãos. Para a Escola Mística, o delta representa também as forças criadoras primordiais da filosofia hermética, Enxofre-Sal-Mercúrio.

A agregação destes dois símbolos, o delta e o olho que tudo vê, sugere a perfeição da consciência divina na sua totalidade e na sua natureza e é uma iconografia que sobrevive à passagem do tempo de uma forma invulgar, permanecendo imutável em significado ao longo de séculos.

Apenas para não omitir uma das representações mais conhecidas deste figurino, o olho que tudo vê aparece ainda representado dentro de um triângulo como parte de uma pirâmide inacabada, símbolo comumente associado ao grupo illuminati, e presente, a título de exemplo, nas notas americanas de um dólar. 

E uma vez que estamos num templo maçónico, peço-vos que por um instante que fixem o olhar a oriente, enquanto regresso ao antigo Egito e ao simbolismo associado a Hórus. Neste tempo era crença que o seu olho direito representaria a informação concreta, controlada pelo lado esquerdo do cérebro e representado pelo sol, e simbolizava o masculino, sendo responsável pelo entendimento das letras e dos números; por sua vez o olho esquerdo representaria a informação abstrata, controlado pelo lado direito do cérebro e representado pela lua, simbolizando o lado feminino, dotado de sentimentos, intuição e capacidade de perscrutar o lado espiritual. Passaram três milénios, mas permaneceu uma inegável similitude simbólica.

É sem perder o vislumbre desta simbologia de conjunto que, no nosso templo maçónico, entre as referidas representações do Sol e da Lua, do lado oposto à entrada e encimando a cadeira do Venerável Mestre, encontramos um símbolo designado por Delta Luminoso.

Enquanto do interior emana o supra citado olho que tudo vê, a envolvente não se trata de um triângulo equilátero senão de um triângulo isósceles, em que a base é maior do que os dois outros lados, iguais entre si, para que o ângulo do topo do triângulo tenha 108˚; com estas medidas de ângulos internos, a razão entre a base e a lateral corresponde exatamente a 1,618033989, o número de ouro, e a tradução numérica da proporção divina encontrada em inúmeros exemplos na natureza.

Os seus três lados podem perfeitamente traduzir a divisa Liberdade, Igualdade, Fraternidade; já os três vértices podem significar passado, presente, futuro e o triângulo, no seu todo, significar eternidade; os três ângulos, sabedoria, força, beleza, são atributos divinos e representantes dos três reinos da natureza, ou das três fases da vida humana, o nascimento, a vida e a morte.

De regresso ao Delta, este surge como um dos mais importantes símbolos maçónicos; nos ritos teístas ele representa a presença da divindade, enquanto nos ritos deístas ou agnósticos ele simboliza a sabedoria.

Neste contexto é importante esclarecer que, quando estudamos a verdade revelada à luz do livro sagrado, temos o problema da existência de Deus pela revelação ou pela fé e nesse caso somos teístas; já quando estudamos o mesmo problema à luz da razão, dentro da verdade intuída, somos deístas ou agnósticos; agnóstico é aquele que acredita na existência de Deus, mas que, ao mesmo tempo afirma que a razão humana não tem condições de provar ou negar sua existência.

São teístas, por exemplo, o Rito de York e o Rito Escocês Antigo e Aceito, em certas Obediências e Grandes Lojas, pois têm no Livro Sagrado a representação da verdade revelada. Já noutras obediências, como o GOL, o Rito Escocês Antigo e Aceito assume-se como deísta, exigindo aos seus obreiros a crença no Grande Arquiteto do Universo e num Livro Sagrado, quaisquer que estes sejam; o Rito Francês ou Moderno é deísta, agnóstico e adogmático porque não adota o Livro Sagrado, não invoca o Grande Arquiteto do Universo e promove liberdade total de pensamento. 

E este discernimento é importante porque, habitualmente, nos ritos teístas encontra-se no centro do delta a letra hebraica “IOD” que é a primeira letra do nome hebraico de Deus e que portanto representa a própria divindade. Já nos ritos deístas ou agnósticos, o delta é representado na sua forma simples, mais usualmente designada por Delta Flamejante ou Delta Luminoso, com raios irradiando dos limites do triângulo, por vezes inscrito numa nuvem, e simboliza a sabedoria e o Grande Arquiteto do Universo.

O Delta pode ainda conter no seu interior a letra “G”, cujo significado normalmente se reserva aos Companheiros, mas sobre o qual se pode adiantar, sem grande mácula, que os antigos maçons operativos empregavam esta letra como referência a ciência da geometria.

A maçonaria não é uma religião, mas determina que seus membros acreditem num ser criador, independentemente de como nós o entendamos, pois o primeiro e fundamental Landmark é a crença em Deus como sendo o Grande ou Supremo Arquiteto do Universo, o ser que do seu plano mais elevado, governa o universo com Sabedoria, Força e Beleza. É precisamente ao contemplarmos o olho que tudo vê que rapidamente nos recordamos que o Grande Arquiteto do Universo está sempre presente e a observar os nossos atos e todos os nossos pensamentos; prova disso é o momento da iniciação, quando o neófito finda as suas provas e tem o primeiro vislumbre da luz, pois é nesse preciso instante que ele se vê diante do Grande Arquiteto do Universo, na simbologia do delta luminoso. 

A maçonaria é tão rica em símbolos como na pluralidade de significados associada a esses mesmos símbolos; mas esta multiplicidade tem uma razão de ser; estes são os sinais que nos guiam e que nos despertam o pensamento, e por isso têm que ser interiorizados, sentidos, criticados e aclamados.

A este propósito, deixo-vos as palavras não só sábias como apropriadas do meu homónimo Álvaro de Campos:


Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos.
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
e ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas
para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes.
Por uma diminuição instintiva,
porque o mar também é terra...

Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
e o que fica da luz do dia
doura a cabeça da costureira que para vagamente à esquina
onde demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria, pobre figura de miséria e desamparo 
que o namorado voltasse para a costureira.


Autor: Álvaro de Campo 

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