A Fraternidade

A Fraternidade enquanto conceito contemporâneo, não é mais do que uma herança iluminista cuja essência reside na ideia da liberdade intrínseca do indivíduo, isto é, na coragem de pensar por si mesmo e tomar as suas próprias decisões.

Mas na verdade este vocábulo está presente nas nossas vidas desde as mais vetustas civilizações; na Roma Antiga o termo era utilizado para citar as relações de compreensão e cooperação entre irmãos descendentes de uma mesma linhagem e foi sobre esse preceito que se estabeleceu, nesse tempo, o conceito de sociedade particular em comunhão de bens. Esta noção de parentesco entre irmãos ou mesmo de irmandade, está patente na própria etimologia da palavra, de onde se retira do latim frater o significado de irmão. 

Mais tarde, com a eclosão do Cristianismo, o conceito de fraternidade desenvolve-se como ideia, deixando de estar associado apenas ao vínculo sanguíneo entre os homens, e passando a estar fundamentalmente ligado à conceção de próximo, já que, para os Cristãos, o homem é uma criação de Deus à sua imagem e semelhança, e por conseguinte prevalece a crença em todos os homens como irmãos.

Já na Idade Moderna, a fraternidade encontra presença como categoria política, juntamente com a liberdade e com a igualdade, através da divisa consagrada na revolução francesa; estes vocábulos têm a sua origem em 1789 no lema “liberdade, igualdade ou morte” cunhado por estes revolucionários, e o seu culminar em 1848, no decorrer da segunda república, quando finalmente se estabelece a tríade liberdade, igualdade e fraternidade como emblema oficial de França e posteriormente como lema da Maçonaria. 

Na Europa dita latina, estas revoluções liberais sublevaram povos contra tronos, esses tronos que desde a Idade Média se ancoravam em altares, ao terem por base a teologia política em que quer o poder, no ofício régio, quer a ordem social estabelecida, eram ambos legitimados pela religião. Quando esta trilogia “Liberdade, Igualdade, Fraternidade“ se consolida no século XIX, marca indelevelmente uma nova era; era em que ainda hoje vivemos, entre o Liberalismo e o Republicanismo.

Esta liberdade física do homem foi estabelecida sob a génese do pensamento de que todos os homens nascem livres e iguais; a fraternidade vem complementar este ideal, pois uma sociedade com homens livres e iguais não se pode sustentar se não houver fraternidade. Na Maçonaria, esta circunstância fica bem patente no momento da iniciação de um profano, que após receber a luz passa a ser reconhecido como um irmão por todos os maçons. Para se adquirir este espírito fraterno é necessário ter respeito, benevolência, modéstia, afeto, cordialidade e todos os outros valores que possam remeter ao amor que deve prevalecer no seio familiar.

Traçada a sua história, cabe-nos intentar a compreensão do seu significado e para tal vamos atrever-nos a recorrer à noção de ética da fraternidade desenvolvida por Max Weber, que tratou o fenómeno da moral social recorrendo a várias tipologias ditas ideais, entre as quais a da “ética da fraternidade”. Esta é vista e analisada partindo de um conceito muito particular denominado “comunidade de vizinhos”, que repousa simplesmente na proximidade de assento, a típica aldeia; aqui reina um princípio de reciprocidade próprio da ética popular, reconhecido como a regra de ouro: “assim como tu para mim, assim eu para ti”. Como esta se cingia exclusivamente às relações no interior do grupo, no trato com os estranhos à comunidade elevam-se outros padrões, admitindo-se por exemplo a escravização ou a segregação; determinar quem é o vizinho ou o próximo passa assim a ser uma questão moral central. 

Para enfrentarmos o problema que nos propomos, não nos serve esta ética particularista e de reconhecimento restrito, necessitamos de uma ética da fraternidade universalista, isto é, de reconhecimento pleno de todos os seres humanos como pessoas.

Num esforço de procura da universalização do destinatário da reciprocidade desta regra de ouro, remetemo-nos, como que por novo acaso, ao Cristianismo na essência da sua palavra escrita, na forma da “Parábola do bom Samaritano”.

Parabolizemos; um homem encontra-se caído na terra, depois de ser golpeado por assaltantes, na estrada que liga Jerusalém a Jericó, já de si mal-afamada pelos frequentes assaltos que assolavam os seus transeuntes. É de entre estes que surgem um sacerdote e um levita que de logo evitam aproximar-se do homem tombado, cujas qualificações lhes são desconhecidas e do qual não se sabem ser judeu ou estrangeiro, pagão ou prosélito, essénio ou fariseu. Eis o contrassenso; ao evitarem aproximar-se para determinar se o homem tombado é próximo ou não pelos critérios convencionais, o mandamento ético perde qualquer conteúdo, mesmo restrito… como identificar o próximo no homem caído sem dele se abeirar? 

É neste interlúdio que surge um novo protagonista; um samaritano, por definição inimigo dos judeus, quer do ponto de vista político quer do ponto de vista religioso. Estando na Judeia, onde ninguém é seu vizinho, onde a ninguém deve reciprocidade, e onde só pode esperar hostilidade, é este forasteiro quem se aproxima do seu quase certo inimigo. Contrariamente ao levita e ao sacerdote, que encontraram apenas um vulto humano, tal como também encontraram pedras e árvores no seu caminho, o samaritano tornou-se cego a qualquer discriminação e viu uma pessoa na sua integralidade, não um judeu, samaritano, romano, fariseu ou essénio… e assim lhe prestou o tão inescusável auxílio.

Permitam-me agora inferir, desta impoluta conduta solidária, um advento da mais pura e genuína fraternidade, pois que o homem fraterno não interroga “quem é meu próximo?”, já que questão não é sequer legítima; colocar condições para reconhecer o outro significa alienar-se dele; para a ética da fraternidade, perguntar pelo próximo é o mesmo que perdê-lo.

A eventual ambiguidade entre fraternidade, solidariedade e mesmo caridade, sessa na constatação de que a primeira assenta no reconhecimento da dignidade entre todos os homens, considerando-os iguais e assegurando-lhes plenos direitos individuais, sociais e políticos. Estabelece-se deste modo uma escolha consciente por uma vida em sociedade, onde esta relação de igualdade e sem diferenças hierárquicas, é a peça-chave para a plena configuração da cidadania. 

Sem perder o mote da palavra de Max Weber, afastamo-nos um pouco da relação com a sociologia em direção à filosofia, procurando um significado em alguns dos grandes pensadores de outrora. 

Emmanuel Kant afirma que a pessoa humana não deve jamais ser tratada como meio dos seus próprios fins, mas sempre como um fim em si mesma; esta prova de dignidade, tal como definida na moral Kantiana, não é mais do que o primeiro direito fundamental do homem, tal como estabelece o art. 1° da Declaração dos Direitos do Homem: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos e são dotados de razão e consciência e devem agir uns com os outros num espírito de fraternidade. 

Nietzsche por seu lado afirma que a fraternidade é enganosa, porque ao procurar ajudar o irmão tem como real propósito possui-lo; o altruísmo torna-se, segundo o filósofo, o sentimento de contínua busca por subjugar o outro.

Recuando no tempo até Sócrates, quando este ensina e instrói nos terreiros e praças públicas, lança as sementes da maioridade terrestre, o formoso ideal da fraternidade e da prática do bem.

De regresso ao pensamento próprio, e se numa citação nos fosse pedida a definição de fraternidade, hoje caracterizá-la-ia como sendo um laço de união entre os homens, onde se desenvolvem sentimentos de afeto próprios dos irmãos de sangue, inteiramente fundada no respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua liberdade e na igualdade de direitos; estas palavras não nos são, nem deveriam ser, estranhas a nós, Maçons.

Mas em boa verdade, nada mais me resta do que remeter-me ao ridículo da minha insignificante existência e interiorizar que tudo isto não passam de meras palavras; vãs e inúteis palavras. A fraternidade não se define com prosas, não se ensina com vocábulos, não rompe a existência só por simples vontade de querer; a fraternidade funda-se na dor das emoções, inspira-se na alegria dos momentos, realiza-se no íntimo do espírito e manifesta-se no altruísmo desprendido dos nossos gestos, algemando-nos como se fossemos elos de uma inquebrável cadeia que nos une como irmãos.

E esta alegoria simbólica à Cadeia de União diz-nos que somos muito mais do que carregadores de paramentos, anéis, luvas e símbolos; somos os filhos da viúva, os descendentes da luz, os eternos aprendizes; temos e mantemos vivo nas nossas mentes esta condição, este estado que é permanente e que constitui o nosso próprio ser, como ser fraterno.

A fraternidade inspira viagens por prosa e versos de poetas e escritores, é por isso apropriado concluir com uma estrofe do poema "A Passagem das Horas" de Álvaro de Campos.


Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito. 
Só humanitariamente é que se pode viver. 
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos, 
Só assim, ai de mim! Só assim se pode viver. 
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!


Autor: Álvaro de Campos

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