História de uma Flor: A Miosótis
De traço descomplicado e sem nenhuma beleza invulgar, a miosótis é uma flor primaveril, de silhueta pequena e delicada, com 5 pétalas simétricas e aveludadas que podem assumir a cor azul, rosa, branca ou amarela.
Originária das terras frias dos czares, as suas mais de 7 dezenas de espécies distintas proliferam pelas serranias da generalidade dos continentes, passando despercebida nos campos mais verdejantes, nas montanhas mais recônditas e até nas vitrinas das mais intrigantes floristas.
É nas lendas medievais que ganha a sua notoriedade e também o seu nome; é costumeiramente conhecida por “não-me-esqueças”, adquirindo idêntico significado em Inglês “forget-me-not”, em Alemão “vergissmeinnicht”, em Espanhol “nomeolvides” e em Italiano “Nontiscordardimé.
Reza a lenda, que num dia de Primavera dois jovens apaixonados se encontravam na margem de um rio, quando a formosa donzela avistou um ramo de miosótis a flutuar nas suas águas, tendo ficado maravilhada pela sua beleza. O jovem cavaleiro, com tanto de impetuoso como de tolo, de imediato se lança líquido turbulento deste flúmen com o intuito colher tão bela flor, mas acaba por não resistir à sua imponente corrente, dirigindo como último suspiro de vida à sua amada as palavras: "Não-me-esqueças". Encerra a lenda que a partir desse dia a miosótis passou a crescer nas ourelas dos rios para que mais nenhum homem ou mulher tivesse que perecer em sua penitência.
Fabula-se ainda que Adão, enquanto estava no Jardim do Éden a nominar as plantas, se terá esquecido desta miudinha flor; quando interpelado, de imediato responde que dai em diante seria conhecida por “não-me-esqueças”, para que jamais lhe faltasse à memória o seu nome.
Das muitas lendas que ficam por contar, e mais uma vez sem qualquer pretensão religiosa, fica a referência à bonita variante azul da Miosótis, que teria nascido das lágrimas derramadas por Maria, mãe de Jesus.
O tempo passou e com ele se cogitaram lendas inauditas ao mesmo tempo que as antigas se reinventaram ou mesmo se desvaneceram, mas na cultura popular ficou para sempre o significado da miosótis como símbolo de recordação, de fidelidade e de amor verdadeiro. É sem perder este traço de memória que, no período entre a primeira e segunda grande guerra, época de grandes provações, desponta esta delicada flor de cor azul como símbolo das organizações de caridade Alemãs, com o particular significado “não se esqueçam dos pobres e desamparados”.
Mas é mais tarde no século XX que a miosótis adquire um simbolismo com tanto de particular como de íntimo com a Maçonaria, fruto de um dos períodos mais negros da história da humanidade.
Esta narrativa principia quando em 1920 o general Erich Von Ludendorff, herói alemão da primeira grande guerra, inicia uma campanha antissemítica e antimaçônica, consagrada no seu livro Aniquilação da Franco-maçonaria, no qual, além de uma pouco idónea exposição desta instituição, reparte entre esta e o povo judeu a atribuição de culpa pelo fracasso da Alemanha na primeira grande guerra; sem casualidade, o mesmo defenderia Hitler poucos anos mais tarde no seu livro Mein Kampf.
É no ano subsequente a esta ultima publicação que a nossa flor é pela primeira vez consignada em Maçonaria, quando serve de oferenda aos participes na comunicação anual da grande loja "Zur Sonne" em Bremen; vivia-se na Alemanha uma época de intensa inquietação social e de profunda crise económica, com a generalidade da população a passar por grandes privações, mais tarde profusamente acentuadas pela grande depressão de 1929. O intento de distribuir a miosótis neste convénio, foi precisamente o de lembrar os irmãos para o papel solidário e de caridade que a grande loja deveria desempenhar junto desta sociedade destroçada.
Deste tumulto social reafirma-se o poder do partido nacional-socialista, que na primavera de 1934 toma a primeira de muitas deliberações antimaçónicas, interditando a admissão no partido a todos os Maçons que não tivessem renegado a Maçonaria antes do final de Janeiro de 1933. Nesse mesmo ano, o ministro do interior Hermann Göering emite um decreto exortando as ordens Maçónicas à dissolução voluntária, não sem antes as submeter de forma clandestina à violência das SS e das SA, o que promove a saída de numerosos irmãos das suas lojas. É neste contexto sociopolítico que a "Grande Loja do Sol", ciente dos riscos eminentes, adota prudentemente a pequena miosótis como símbolo mais discreto, em detrimento do tradicional esquadro e compasso.
O previsível desfecho dá-se em 28 de Outubro de 1934 quando, por decreto, o Ministro do Interior Wilhelm Frick rotula as lojas Maçónicas como hostis ao estado e em 17 de Agosto de 1935 estas são formalmente dissolvidas e todos os seus bens confiscados, selando em definitivo o destino da Maçonaria na Alemanha nazi.
Não obstante, este epílogo foi apenas transitório, assim como o sofrimento dos nossos irmãos, pois em 1935 surge um novo ímpeto persecutório na figura de Reinhard Heydrich, à data chefe de polícia de segurança; verdadeiramente obcecado com os Maçons e determinado a purgar a sua influência no mundo intelectual e académico, cria a seção II/111 das SS, especificamente incumbida de observar os Maçons com influência na opinião pública; mais tarde, no prelúdio da grande guerra e já como chefe do Escritório Central de Segurança do Reich, estabelece a nova Seção VIIB1, particularmente diligente na investigação, vulgo açoitamento, da Maçonaria e dos seus membros.
O principiar da guerra traz o intensificar da persecução à Maçonaria, com o prosseguimento no arresto dos bens e propriedades de muitos Maçons, e mais tragicamente com a sua deportação para campos de concentração, onde forçosamente ostentavam nos seus trapos de prisioneiros o triângulo vermelho invertido, insígnia dos presos políticos.
É também neste ínterim que, de forma algo inusitada, o regime nazi permite a amnistia dos membros da Maçonaria que dela se houvessem desvinculado até Abril de 1938; ainda que nunca tenha cessado o seu martírio pelo partido nacional-socialista pelas SS, muitos irmãos são mesmo incitados a integrar as fileiras da Wehrmacht.
Para enquadrar o papel da nossa flor neste período, recuemos até 1936, ano em que a organização de caridade "Winterhilfswerk" efetua uma primeira coleta de fundos com tenção solidária, distribuindo a miosótis como símbolo deste gesto participativo; o uso das palavras caridade e solidariedade talvez seja desadequada ou mesmo injurioso, pois quer esta quer as subsequentes ações da “Winterhilfswerk” têm como propósito último liberar os fundos estatais para o esforço de guerra.
Esta coincidência, como qual metáfora simbólica, talvez tenha sido o elemento percursor da generalização do uso da miosótis como símbolo circunspecto da Maçonaria, permitindo aos Maçons o reconhecimento e a descrição necessárias à sua sobrevivência durante as trevas do nazismo. É pelo menos assim que se narra a história, dada ausência de assento nos livros de que em algum momento entre 1939 e 1945 a miosótis tenha sido utilizada pelos nossos irmãos. Fará sentido esta afirmação, quer seja por crermos que dificilmente o regime nazi aceitaria o uso rotineiro de qualquer simbologia que não lhe prestasse direta vassalagem, quer seja pelo facto de grande parte dos registos Maçónicos desta época e geografia terem sido suprimidos.
Desta cronologia sobeja-nos o emaranhado de datas, de factos e de especulações, mas desta teia não se pode apagar a memória dos irmãos que foram torturados e assassinados durante o regime nazi; essa horrível incerteza estima-se entre 80.000 a 200.00, em toda a Europa ocupada.
É no recobro deste holocausto que em 1947, do meio dos escombros de uma Alemanha destroçada, se reerguem as colunas da "Grande Loja do Sol", pela mão do seu anterior grão-mestre Beyer, e que renasce a nossa flor na forma de um pequeno pin, como símbolo da primeira convenção anual dos Maçons sobreviventes ao genocídio da grande guerra.
É pois seguindo este mesmo fio condutor que em 1948, e em memória a mais de uma década de perseguições, o irmão Theodor Vogel, mestre na loja "Zum weißen Gold am Kornberg" em Selb, toma a iniciativa de forjar pins na forma de miosótis e de os ofertar na primeira convenção anual das grandes lojas unidas da Alemanha, consolidando com este gesto simbólico esta flor como bandeira Maçónica. Mais tarde, e já como grão-mestre da grande loja AFuAM, brinda os presentes da Grande Conferência Maçónica em Washington com idênticos pins, transportando a simbologia da miosótis através do Atlântico.
No presente, a miosótis é utilizada amenamente em todos os hemisférios, na mesma forma consentida de um pin de lapela, em deferência para com todos os irmãos que ao longo da história sofreram em nome da Maçonaria. É com esta memória, e na mesma forma material, que ainda hoje este símbolo é oferecido aos novos mestres Maçons na Alemanha, aos quais é desvendado o seu significado, para nunca se perca a história de coragem, honra e fraternidade dos Maçons que sobreviveram, e dos que não sobreviveram, ao jugo do nazismo.
Esta flor, com tanto de exíguo no porte como de imenso no simbolismo, renasce como signo da fraternidade, um dos pilares da Maçonaria, e subleva-se como um dos emblemas mais representativos da Maçonaria na Alemanha.
No epílogo desta prosa, plena de factos e de lendas, não posso deixar de vos transmitir o sentimento que perdurou em mim depois de granjear estes traços; na diversidade das suas 74 espécies revejo a pluralidade da Maçonaria, mas na unidade do seu significado contemplo o nosso laço singular como irmãos; na simplicidade e na descrição da sua forma realizo a frugalidade e recato da nossa instituição mas no momento e na forma em que foi e é oferendada a maçons e profanos, revisito um princípio que deve governar qualquer instituição maçónica, quer no seu íntimo quer para o seu exterior; a solidariedade.
Findo o epílogo, resta-me uma confissão; o narrar desta história surgiu fortuitamente e com tanto de insuspeito como de gracioso, na forma da oferta de um irmão pelo qual nutro uma especial e singular amizade e respeito; tal como à pouco mais de um ano um solitário individuo teve a fortuna de encontrar na Ilha do Corvo a myosotis azorica, uma das plantas mais raras do mundo e que se temia extinta, também este homem teve a felicidade de se encontrar, no talhe de uma rara família de homens extraordinários e de nobres valores; a Maçonaria.
O seu porte discreto e a sua forma simples e impoluta não foram motivos o bastante para impedir um sentido tributo do nosso Fernando Pessoa, na forma de três curtas estrofes que parecem dizer tanto ou mais que a prosa pretérita:
É talvez a mais pequena.
Se vens dizer-me a verdade,
Vê lá bem se vale a pena.
Uma coisa é a verdade
E outra coisa é ser feliz.
Se vens dizer-me a verdade,
Vê lá bem o que ela diz.
E o que está dito é só dito.
Se vens dizer-me a verdade,
Sabes bem se eu acredito?
Autor: Álvaro de Campos
Comentários
Enviar um comentário