Da Dialética entre Moral e Ética ao Ser Consciente

Se há temática que sempre me seduziu foi o esquadrinhar dos princípios morais e do julgamento ético e essa nossa capacidade, como indivíduos, de avaliar o mundo de forma sublime, por comparação com os demais seres vivos ditos inteligentes; e se de sapiência discorro, porque não incluir nesta paragona as modernas engenhocas, copiosas em algoritmia da agora tão parangonada inteligência artificial?

Mas este não é o fascínio do estudioso erudito que procura o sentido da vida, nem do douto engenheiro que busca o segredo da omnisciência das máquinas; é antes o fascínio do estupido ignorante, que ainda que sendo ocasionalmente um estudioso e rotineiramente um engenheiro, somente quer saber o que nos torna tão singulares ao ponto de conseguir granjear estes traços na forma de letras, as letras na forma de palavras, as palavras na forma de frases e as frases na forma deste prosaico arranjo que apelido de texto, e que hoje partilho com os meus irmãos.

Mas, comecemos pelo princípio, e esse, pela ordem consagrada no título refere-se à moral. Do latim não a distinguimos claramente da ética, pois de ambas tiramos idêntica significação relativa aos costumes. Mas esta réstia de ambiguidade cessa na etimologia, pois na verdade vejo-as de forma profundamente distinta, ainda que complementares.

No meu entender a moral não é mais do que o conjunto de regras, de preceitos e de leis aplicadas no quotidiano por cada individuo, orientando as suas ações e os seus julgamentos sobre o que é moral ou imoral, certo ou errado, bom ou mau.

Mas a moral padece de um inconveniente, pelo menos na minha interpretação; ela é relativa, temporária, mutável; há moral entre biltres e patifes, entre quem mata e segrega a refugio das leis, entre quem politiza sob pretexto do bem comum, entre quem comete atrocidades sob o duto da religião. A moral está intrinsecamente ligada ao tempo, espaço e grupo social e cultural em que discorre e por isso não é nem pode ser universal. De certa forma a moral é externa ao indivíduo, pois habitualmente precisa de ser ensinada e vulgarmente precisa de ser imposta.

Talvez os mais alheios se interroguem de como podem coexistir diferentes morais? Para os presentes certamente que é universalmente aceite que matar outro ser humano é errado, ainda que em outras pátrias a pena de morte seja legal, moral e aceite; mesmo tempo, lugares distintos. Nesses mesmos prados, há bem pouco tempo, estava institucionalizada a segregação monocromática de raças, para hoje ser considerado algo abominável e moralmente errado; apenas mudou o tempo, não o lugar. 

Tal como no passado distante, neste tempo, no nosso tempo, a moral difere; seja na forma da vivência poligâmica de um Muçulmano, do kilt festivo de um Escocês ou da nudez de uma tribo da Amazónia.

Seguindo a ordem no rótulo deste desvario linguístico, chegamos à ética; e essa, para mim, vai um pouco, ou muito mais além, quando a defino como o conjunto de conhecimentos extraídos do comportamento humano, na tentativa de explicar as regras da moral de forma racional e fundamentada, independentemente do espaço social e cultural em que se inserem.

Procurando intencionalmente ser redutor, a ética é não mais do que uma reflexão sobre a moral, o seu estudo filosófico, baseada em conceitos temporais e não temporários, e por isso é verdadeiramente universal, e por isso é uma virtude.

Ser ético significa ter a capacidade de perceção dos conflitos entre o que nos narra o coração e o que é cogitado no cérebro; é ao juízo ético que cabe o papel de trilhar o caminho entre a emoção e a razão e de assim inventar o equilíbrio mais consentâneo para as nossas ações.

Da simples diligência de devolver um cunho perdido por um descuidado transeunte, passando pelo gesto fraterno em socorrer um irmão em aflição, até ato espontâneo do desconhecido que, sem receio pela sua vida, invade um carro em chamas para resgatar uma anónima criança, tudo são comportamentos éticos, porque simplesmente os realizámos convictos que seriam as atitudes corretas.

Alguns chamar-me-ão infame pateta por me atrever a tal destrinça, achando porventura que a moral é a ética do quotidiano e que de ética vivem os médicos, advogados, engenheiros, clérigos e políticos; noutro tempo e lugar diria que isso não é ética, é deontologia e faz parte da filosofia moral contemporânea. Mas olvidem-se das minhas ultimas palavras, pois iria refugiar-me nos mestres como Espinoza, Kant ou Savater para responder, pois ainda que moralmente correto, por certo que os mesmos filósofos que me criticam não achariam ético citar terceiros.

Então como descrever a um cego objetos que este nunca pode ver? Como pedir a um surdo que entenda a diferença entre música e troada? Da mesma forma como eu próprio apenas tenho convicção da minha própria insciência, como qual apedeuta, daltónico e duro de ouvido, refugio-me nas palavras de um sublime humanista, Albert Schweitzer: “Ética não é mais do que a reverência pela vida. Isso é o que me dá o princípio fundamental da moralidade, nomeadamente, que o bem consiste em manter, promover e melhorar a vida, e que destruir, ferir, e limitar a vida é pura maldade”.

Da ética resta-me dizer que, como qual voluptuosa e casta mulher, que todos fabulizam amar incondicional e desinteressadamente e veneram como quem ansia que esta seja a sublime matriarca dos seus filhos, vejo que por vezes (ou quase sempre), são muitos (ou todos), os que a violentam como se a mais vulgar prostituta se tratasse, como se em algum momento fosse também ela merecedora de tal desgraça.

Moral e ética são assim por mim entendidos como dos mais importantes valores do homem livre, estando intrinsecamente ligadas ao respeito e reverência pela vida; mas o homem, provido de algo singular que se chama livre arbítrio, é ele próprio a personificação de todo o bem e de todo o mal deste mundo, e é do juízo ético que irá colher, dessa liberdade conquistada, o caminho da virtude.

Mas a citação que deu início a este texto tem ainda mais um termo, que em jeito de oração se desdobra em duas palavras; então em que medida se insere o ser consciente ou a consciência no meio destes dois vernáculos, moral e ética? 

A verdade é que o que define o ser humano não são os seus instintos ou marcadores genéticos, tão semelhantes que são a outros animais, mas sim a nossa capacidade de decidir e inventar ações que nos transformam a nós e à realidade que nos circunda. Esta “liberdade”, a que chamarei pensamento consciente, é o fundamento do que consideramos a nossa dignidade racional, e as regras morais e o juízo ético, o fio condutor entre o nosso pensamento e a tomada de decisão.

Esta é a “centelha divina” que nos permite amar sem qualquer explicação racional, odiar por razões fúteis, sorrir por um gracejo, irar por simples capricho, mentir porque nos é profícuo, asseverar quando sabemos estar errados, matar ou escolher morrer … por simplesmente querer.

Mas não me entendam erradamente; não opino como Kant sobre a falta de fé na natureza humana, quando refere que não existe bondade natural e que por natureza somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos e roubamos; apenas reafirmo que a nossa consciência nos dá liberdade de escolha, e que a moral e a ética guiam essa escolha.

E a minha inquietude é justamente de onde provém esta luz que nos torna tão especiais e que nos premeia com esta consciência livre; será uma consequência natural da teoria evolutiva? Será que este fulgor provém do espirito, como representação divina de Deus, um qualquer Deus, no consciente do homem?

Para quem não conhece “O Erro de Descartes” de António Damásio, Phineas Gage será apenas um nome de um comum mortal e na realidade é isso mesmo que ele foi, um jovem vulgar ainda que dotado de uma invulgar responsabilidade profissional; e precisamente no lavor do dia-a-dia, talvez no seu único momento de incúria, a prematura detonação de uma carga explosiva projeta uma ciclópica barra de ferro através sua face esquerda, trespassando a base do seu crânio e a parte anterior do cérebro e saindo pelo topo da cabeça. Por qualquer milagre, e verdadeiro milagre já que a ciência do século XIX pouco mais permitia nestes casos do que cuidados paliativos, Gage sobrevive e, à exceção da visão do olho esquerdo, recupera integralmente todas as suas capacidades físicas.

Mas esta dádiva vem em pouco tempo a revelar uma pessoa diferente; o outrora homem de hábitos moderados e de considerável energia de caráter, astuto e inteligente nos negócios e com uma mente equilibrada e persistente na execução de todos os seus planos, deu lugar a uma pessoa caprichosa e irreverente, que se mostra impaciente e com pouca deferência para com os seus colegas, socorrendo-se frequentemente de linguagem menos própria e parecendo ora obstinado ora caprichoso e vacilante, fazendo frequentemente planos para ações futuras sempre inconsequentes. 

Nem o amparo dos médicos, nem a admoestação dos chefes, nem as achegas dos colegas, nem o socorro dos amigos, nem as lágrimas da família, nem a fé de todas as religiões, tiveram sucesso em redimir tão radical transformação. Este outrora homem de elevados padrões morais, não se tornou num individuo mau, nem violento, nem desrespeitador da lei, mas perdeu de forma inapelável parte essencial do seu juízo ético e de responsabilidade; é como se aquela barra de ferro, ao atravessar o seu crânio, tivesse uma mão divina que lhe apresou uma porção do espírito consciente e o arrebatou violentamente para longe do seu corpo.

Há muito que se aceitam distintas zonas do cérebro como alicerces da linguagem, da perceção e das funções motoras, mas o que este acontecimento funesto vem revelar é uma região muito particular, especialmente encarregue de propriedades humanas únicas associadas ao livre arbítrio, às dimensões pessoais e sociais do raciocínio e à observância das convenções sociais e das regras éticas previamente adquiridas, permitindo antever e planear o futuro e manter o sentido de responsabilidade, perante si próprio e perante os outros.

Como se já de si não fosse surpreendente constatar esta imagem corpórea do espírito consciente, eis que a mesma ciência nos conduz a um novo sobressalto; os vitupérios nesta tão particular região do cérebro pareciam também emudecer os sentimentos, fazendo-se perder a tristeza, a impaciência, a frustração, transformando até uma extemporânea explosão de raiva numa apatia sem rancor. Aventuro-me ao concluir com a convicção dos sentimentos que, sem estes, não poderia haver juízo ético, nem o proferido “ser consciente”; no fundo, não haveria humanidade, com todo o altruísmo e perversidade que a veste.

Recuperando de forma inusitada o primeiro parágrafo deste trecho, como quem não consegue abandonar o rumo do aborrecido homem de ciência, vislumbro longínqua a tão ambicionada inteligência artificial, pelo menos à nossa imagem; por mais flops de processamento e bytes de dados que se vertam numa máquina, esses dados transformar-se-ão simplesmente em excessiva informação, em acanhado ou desajustado conhecimento e em nenhuma decisão dotada de juízo ético, pois falta-lhe ainda o defeito dos sentimentos. Questiono-me … como poderá um fantoche agir com coragem se não sabe o que é o medo? Como poderá amar se desconhece a dor da perda? Como poderá decidir humanamente se não pode senão seguir a “moral” que lhe foi imposta em inúmeras linhas de código?

Feito este repto, como qual princípio de reflexão sobre o futuro da humanidade, regresso ao nós, para afirmar com a relutância da força das palavras que irei proferir, mas com a convicção que serão bem entendidas; não se pode ser maçon sem ter consciência ética. Reconhecendo a moral como parte integrante da vida de todos os homens em sociedade, é precisamente por fazer uso da ética no juízo da moral que o maçon está condenado a trabalhar em prol do bem comum, contestando as leis morais sempre que estas não respeitem os princípios fundamentais da maçonaria; a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Em conclusão, recordo o que sempre intentei ser como homem, e agora como Maçon, na forma das palavras consentidas do meu testamento filosófico, a quando da minha admissão a esta Augusta Ordem; a família é a base da sociedade e o que esta tem de mais precioso e é pois no lar que se forjam as virtudes de um povo, seja no íntimo da minha casa, seja na reclusão do nosso templo. Deste último recinto sagrado, retiro a vontade em aprender, já que tão pouco ambiciono ensinar o que quer que seja; do primeiro, e em concreta mesura para com os meus filhos, aspiro apenas à vontade do querer conceder-lhes algo mais nobre do que bens materiais, na forma de valores como a honestidade, a bondade, a generosidade, a lealdade, a honra e o respeito. Mas acima de tudo, desejo ter a força de caráter para os ajudar forjar o seu próprio “espírito ético”, para que eles próprios possam ajuizar em consciência, e assim contribuir para uma sociedade melhor e mais justa.

Sem perder um hábito adquirido, tal saudável vício que ampara depois de uma árdua peleja, partilho um curto escrito de nome "A Educação do Estóico", da autoria não do meu homónimo Álvaro de Campos nem do seu Fernando Pessoa, mas de um quási desconhecido heterónimo, o Barão de Teive:


Não há maior tragédia do que a igual intensidade, na mesma alma ou no mesmo homem, do sentimento intelectual e do sentimento moral. Para que um homem possa ser distintivamente e absolutamente moral, tem que ser um pouco estúpido. Para que um homem possa ser absolutamente intelectual, tem que ser um pouco imoral. Não sei que jogo ou ironia das coisas condena o homem à impossibilidade desta dualidade em grande. Por meu mal, ela dá-se em mim. Assim, por ter duas virtudes, nunca pude fazer nada de mim. Não foi o excesso de uma qualidade, mas o excesso de duas, que me matou para a vida.


Autor: Álvaro de Campos 

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