Carta ao Egoísmo

Sinto-me distante, e não me refiro a este espaço em particular, mas ao reconhecer-me ostracizado da humanidade em geral, fruto não de um desinteresse fugaz, mas de algo mais profundo e hermético; é resultado do egoísmo de estar centrado em mim, nos meus problemas, nos meus anseios, nos meus temores. 

Este egocentrismo não é introspetivo nem endémico nem fruto das circunstâncias que nos assolam nestas últimas semanas, mas algo muito anterior, profundamente extrospetivo e assustadoramente extenso.

Enquanto penso nesta retórica, toca o telefone e, vocifero para o meu íntimo: mais uma chamada ao trabalho. Errei; era alguém importante, com a importância daqueles indivíduos que na nossa vida são símbolos da força e do otimismo; mas desta vez ouço um homem enfraquecido, onde perpassa o desanimo e o temor; à distância do telefone, vi o medo no seu rosto.

Falhei no propósito tão almejado de lhe transmitir confiança, como antes tantas vezes me tinha sido oferecida; fosse por necessidade ou por conveniência, senti o ceder das pernas e sentei-me, no mesmo assento que tantas vezes usara, mas desta vez soou diferente; sucumbi ao desalento.

Perante novo harpejar do telefone, forcei-me a erguer desta minha poltrona desconfortável, e desta vez o cético em mim não falhou, era trabalho. Granjeadas as matérias laborais, surge inevitavelmente a retórica em torno da pandémica e, quando pensei que nada me iria sobressaltar nesta interlocução, é com assombro que ouço um jovem instruído apregoar a sua revolta pelo facto de os hospitais do seu país estarem a receber enfermos de França e de Itália. Ainda tentei o diálogo em torno da solidariedade, mas fiquei inerte quando retorquiu “…e um dia se não houver camas disponíveis nos nossos hospitais, como trataremos dos nossos?” Esta frase, e em particular a prevalência do vocábulo “nossos”, gerou em mim a consternação da descoberta de uma certeza; a certeza de que solidariedade, igualdade e fraternidade não estão enraizados no íntimo de todos os homens.

Findo o dia, finamente recolho ao meu leito, esforçando-me por afastar do pensamento que este destino é de alguma maneira merecedor desta humanidade que forma indesejada o abraçou.

Como em tantos outros dias, já o descanso pernoitava nas gentes da minha casa, quando por alguma inusitada razão, olhei para a minha companheira de sempre; aquela que constantemente me julga pelo meu ar soturno e negativo mas que desta vez, e talvez pela primeira vez, me fez encontrar nos seus olhos cerrados um singular brilho no olhar, que me transmitiu a mais genuína e singular esperança.

Acordei e procurei junto da janela o desassossego das ruas e o agitar das crianças a caminho da escola, mas nada soava; nada senão o agora ensurdecedor ruido do chilrear dos pássaros que nunca antes havia escutado. Teriam estado sempre ali, no beiral da minha janela, ou terão ocasionalmente despontado a pretexto de uma recém-chegada primavera?

De regresso à agitação possível de quem está confinado à mesma morada, reparo na exuberância com que ecoa nestas quatro paredes o riso e as gargalhadas dos meus gaiatos, enquanto brincam com nada, literalmente com nada; há quanto tempo não sentia tão grande alegria, apenas fruto da mais pura inocência!

Por muito inusitada que seja esta retrospetiva, decidi não me perder em reflexões, até porque não sei se em algum momento no tempo serei capaz de me demitir deste egoísmo que me define; mas soube aprender o significado e alcance dessa mesma palavra, sei revoltar-me contra ela e estou decidido a lutar arduamente contra quem a defende, mesmo sendo eu próprio.

De regresso a esta realidade que chamamos levianamente dia-a-dia, constato o quão antagónica é a vida hoje quando comparada com de um passado que, por estar tão próximo, o mais honesto seria chama-lo de presente; volto a ser egoísta, pois sem o assolo da enfermidade e envolto pelo calor da família e no conforto do lar, infiro sem displicência que já não há dia-a-dia; esta, como tantas outras palavras, perdeu todo o significado para quem está a enfrentar o sobressalto da doença, para quem a reclusão forçada obriga ao distanciamento da família e para quem todos os dias abandona a segurança da sua morada para socorrer os que padecem desta sinistra enfermidade.

E da mesma forma que perdemos uma palavra encontramos outra, no altruísmo destes homens e mulheres; será na abnegação destas homéricas gentes que encontrarei o derradeiro arquétipo de ensinamento para eu derrubar a minha própria muralha de egoísmo?

Experienciamos um momento no tempo de natureza tão notável que as gerações vindouras o irão encontrar inscrito nos livros de história, em páginas e folhas tão extensas como as que emolduram os grandes acontecimentos, aqueles que pela sua dimensão definem a humanidade; a esta distância no tempo, creio que ninguém se atreve a medir o real alcance destas palavras, mas uma coisa podemos dar como certa, o mundo jamais será o mesmo.

É raro não encontrar um escrito de Fernando Pessoa, ou de um qualquer dos seus heterónimos, que não nos proporcione alguma forma de ensinamento, pensamento, consideração ou opinião sobre um qualquer assunto, e esta prosa não poderia terminar com tamanha exceção.


Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive constantemente o estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar, quando eu despir a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade.
Reconheço que o sentido intelectual que esse Serviço da Humanidade toma em mim, em virtude do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestações que em geral revelam o espírito humanitário. Os actos de caridade, a dedicação por assim dizer quotidiana são cousas que raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a negação delas.
Em todo o caso, reconheço, em justiça para comigo próprio, que não sou mais egoísta que a maioria dos indivíduos, e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas letras. Pareço egoísta àqueles que, por um egoísmo absorvente, exigem a dedicação dos outros como um tributo.


Autor: Álvaro de Campos

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